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O Encontro que Pode Mudar Tudo: quando a Justiça aprende a enxergar

Estiveram na formação a tenente Thaysa, a promotora de Justiça Maria José Queiroz e o desembargador do TJPE Élio Braz

Há momentos na vida em que a mudança não vem como um furacão, mas como uma conversa. Foi assim na manhã chuvosa da última sexta-feira (15/8), na Academia de Polícia Militar de Paudalho, a 46 quilômetros do Recife, quando 186 oficiais da 2ª Companhia do Curso de Formação de Oficiais se encontraram face a face com uma realidade que, até então, talvez fosse apenas uma estatística distante ou um conceito perdido nos livros de Direito.

Do outro lado da sala, o desembargador Élio Braz Mendes, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero e de suas Interseccionalidades (CDSGI) do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), e a promotora de Justiça Maria José Queiroz, atualmente coordenadora do Núcleo LGBTQIA+ do Ministério Público de Pernambuco, carregavam nas mãos não apenas slides e apresentações, mas a urgência de quem sabe que cada abordagem policial pode ser a diferença entre dignidade e humilhação para uma pessoa LGBTQIAPN+. Uma parceria importante entre TJPE e MPPE. No Judiciário estadual, a CDSGI foi instituída pelo Ato nº 1489, de 19 de novembro de 2024.

É curioso como algumas profissões carregam o peso de serem a primeira impressão que alguém tem do Estado. O policial militar é, muitas vezes, a porta de entrada da Justiça – aquele primeiro contato que pode definir se uma pessoa se sentirá protegida ou ainda mais vulnerável. E foi pensando nisso que esta iniciativa inédita nasceu: levar conhecimento e sensibilidade para quem está na linha de frente. "A isonomia consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade", explicou a promotora Maria José, ecoando um princípio que, na prática, ainda encontra resistência. Como chamar uma mulher trans pelo nome social? Como realizar uma busca pessoal respeitando a identidade de gênero? Como preencher um boletim de ocorrência sem constrangimentos desnecessários?

São perguntas que podem parecer simples, mas que carregam o peso de décadas de marginalização. Porque, convenhamos, não é fácil ser diferente num mundo que ainda insiste em caixinhas. E quando você precisa da polícia – seja como vítima ou como qualquer cidadão que busca seus direitos –, a última coisa que deveria enfrentar é mais uma dose de preconceito.


 

Quando a Lei Encontra a Vida Real

O desembargador Élio Braz trouxe algo que pode soar revolucionário para alguns: a explicação de que a LGBTfobia não é apenas "falta de educação" ou "questão de opinião". É crime. Crime tipificado, com base legal sólida, fundamentado numa decisão histórica do Supremo Tribunal Federal que reconheceu condutas homotransfóbicas como espécies do gênero racismo.” É de suma importância esse letramento dentro das instituições da justiça e principalmente para quem está na rua, que é a porta de entrada. Estamos partindo na frente e quem sabe, adiante, não teremos o selo do estado mais amigo da comunidade LGBTQIAPN+”, reforçou o magistrado. É imprescritível. Não pode ser objeto de acordos. É coisa séria.

Mas sabe o que é mais importante que isso? É entender que por trás de cada sigla – L, G, B, T, Q, I, A, P, N, + – existe uma pessoa. Uma pessoa que talvez tenha demorado anos para se aceitar, que pode ter perdido família, emprego, casa. Uma pessoa que, quando procura a polícia, já chegou ao limite de sua resistência.

Outro aspecto importante abordado na palestra diz respeito ao nome que o indivíduo carrega ao nascer. Tem algo poético no ato de nomear. Quando nascemos, alguém escolhe um nome que carregamos vida afora. Mas e quando esse nome não combina com quem somos? Quando cada vez que ouvimos nosso nome de registro é como se nos negassem o direito de existir?

A promotora foi clara: nos documentos oficiais, o nome social deve vir primeiro. O nome de registro, apenas quando indispensável. Parece pouco? Para quem nunca teve seu nome respeitado, pode ser tudo. "Estabilizada a situação, o policial deve perguntar a forma como a pessoa gostaria de ser chamada", orientou. É sobre respeito básico. É sobre reconhecer que cada pessoa sabe melhor do que ninguém quem ela é.

E há outros detalhes que não podem ser esquecidos durante a abordagem policial. Os detalhes são onde mora a humanidade. Como o cuidado de que agentes femininas realizem busca pessoal em mulheres trans e travestis. Como a discrição ao solicitar esclarecimentos, para não constranger. Como o entendimento de que homens trans podem usar binder (para comprimir os seios) e packer (prótese peniana), e que isso não é motivo para tratamento diferenciado.

São orientações práticas que traduzem em gestos concretos o que significa respeitar a dignidade humana. Porque não adianta falar de igualdade se na hora H, no momento da abordagem, na delegacia, no preenchimento do boletim de ocorrência, a pessoa volta a ser tratada como cidadã de segunda categoria.

Talvez o símbolo mais bonito da sigla LGBTQIAPN+ seja justamente o "+". Ele representa todas as outras identidades que não cabem nas letras, todas as pessoas que ainda estão se descobrindo, todas as formas de amar e existir que a humanidade ainda vai inventar. É o símbolo da diversidade infinita que somos.

E é para proteger essa diversidade que existem leis. É para garantir que cada pessoa possa andar na rua, entrar num restaurante, usar um banheiro, trabalhar, amar, sem ter que justificar sua existência. “Esse cuidado em capacitar os oficiais em formação, que irão liderar as tropas e que estão em contato direto com a sociedade. A gente só tem a agradecer essa oportunidade. Tema importante para nossa vida. Ter acesso a esse conteúdo antes da prática”, explicaram a major Emanuela e a tenente Tahaysa. 

No próximo dia 29, desembargador e promotora retornarão a mesma Academia. Serão outras conversas e outros esclarecimentos para novos alunos oficiais. E nos meses de setembro e outubro, nas dependências da Escola da Magistratura de Pernambuco (ESMAPE), o bairro de Joana Bezerra, esses encontros se estenderão aos praças, totalizando quase 5 mil profissionais da Polícia Militar de Pernambuco.

Quando um policial militar entende que sua função é proteger e servir – todos, sem exceção –, algo muda no mundo. Quando a justiça aprende a enxergar todas as cores do arco-íris humano, todos nós nos tornamos um pouco mais livres. E talvez, chegue o dia em que ninguém mais precise explicar por que merece respeito. Porque respeito não se explica, se pratica.

Acesse a legislação que garante os direitos das pessoas LGBTQIAPN+


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Texto: Ana Paula Santos | CIJ TJPE
Fotos: cortesia